O novo status do saber na era tecnológica e
os desafios para a educação segundo Hans Jonas*
Jelson Roberto de Oliveira[1]
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil)
Recibido:
Octubre 19 de 2016 – Revisado: Enero 15
de 2017 - Publicado
In PRESS: Febrero 20 de 2017
Referencia norma
APA: Oliveira, J. R. (2017). O novo status do saber na era tecnológica e os
desafios para a educação segundo Hans Jonas. Rev. Guillermo de Ockham, 15(1), In press.
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licensed under CC BY-NC-ND
Resumo
O objetivo do
presente artigo é analisar a mudança no estatuto do saber a partir da era
moderna e suas repercussões sobre a educação no século vinte um, tendo como
referência a filosofia de Hans Jonas. Para tanto, analisaremos como o
conhecimento perdeu seu valor contemplativo, ontológica e politicamente
falando, para assumir uma perspectiva de exploração do mundo, chegando a
apresentar-se ele mesmo como uma mercadoria, na forma da informação.
Contrapõe-se, assim, o homo faber ao homo sapiens, com o prejuízo do segundo.
À educação cabe enfrentar a tensão entre o fazer
e o saber, recusando uma visão
simplista da ideia de competências e assumindo uma posição crítica capaz de
preparar o ser humano integralmente para assumir a sua responsabilidade diante
dos novos poderes da tecnologia.
Palavras-chave:
educação; conhecimento; Hans Jonas; competências; tecnologia.
The new status
of knowledge in the technological era and the challenges for education
according to Hans Jonas
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the change in the status of
knowledge in the modern era and its impact on education in the twenty-first
century, with reference to the philosophy of Hans Jonas. We will analyze how
knowledge lost its contemplative value, ontological and politically speaking,
to assume a perspective of the world’s exploration, presenting itself as a
commodity in the form of information. Opposes, therefore, the homo faber to homo sapiens, with the loss of the second. To education fits face
the tension between doing and knowing, refusing a simplistic view of
the simplistic idea of competencies and assuming a critical position able to
prepare the human being to assume his responsibility in the face of the new
powers of technology.
Keywords:
education; knowledge; Hans Jonas; competencies; technology.
El nuevo estatus del conocimiento en la era tecnológica y los desafíos
para educación de acuerdo a Hans Jonas
Resumen
El propósito de
este trabajo es analizar el cambio en el estado de conocimiento a partir de la
era moderna y su impacto en la educación en el siglo XXI, con referencia a la
filosofía de Hans Jonas. Vamos a analizar cómo el conocimiento pierde su valor
contemplativo, ontológica y políticamente hablando, para asumir una concepción
de exploración del mundo, llegando a presentarse a sí mismo como una mercancía
en la forma de información. Se opone, por lo tanto, el homo faber al homo sapiens,
con la pérdida del segundo. A la educación resulta necessario enfrentar a la
tensión entre el hacer y el saber, rechazando una visión simplista
de la idea de las habilidades y asumindo una posición crítica capaz de preparar
al ser humano para asumir plenamente su responsabilidad ante los nuevos poderes
de la tecnología.
Palabras clave: educación; conocimiento; Hans Jonas; habilidades;
tecnología.
Introdução
“A
educação tem um fim determinado como conteúdo:
a
autonomia do indivíduo, que abrange essencialmente
a
capacidade de responsabilizar-se”. (Hans Jonas)
“Todos os
seres humanos têm, por natureza, desejo de conhecer”: com essa famosa frase
Aristóteles inicia a sua Metafísica,
tematizando a tendência ao conhecimento como parte central da essência humana.
O que talvez soe estranho aos ouvidos contemporâneos seja a continuação da
asserção, na qual o filósofo destaca como “prova” dessa disposição o “prazer
das sensações” que, “fora até da sua utilidade, nos agradam por si mesmas” e,
“mais do que todas as outras, os visuais” (1984, p. 11). Para Aristóteles, a
visão é, entre os sentidos, o que mais nos faz conhecer as coisas. O pano de
fundo dessa convicção é a concepção de que o ser humano, como ser racional,
realiza-se plenamente através da contemplação da verdade, ou seja, da teoria. Sem negar a importância das
sensações e da experiência, o estagirita destaca a capacidade humana de
raciocinar, contrapondo a filosofia como ciência
das causas à mera empeiría e téchne,
ou seja, afirmando que “há mais saber na arte do que na experiência”, já que a
pergunta sobre o porquê das coisas é
superior àquela que se ateve ao quê e
ao como.
O modelo
de educação derivado desses princípios prioriza a discussão, a reação e o
debate com os estudantes, uma metodologia utilizada pelo próprio Aristóteles e que
deveria contribuir para que os espíritos pudessem alcançar a nobreza de caráter
e aproximar-se da perfeição e da felicidade, por meio de uma investigação comum
que garantia aos discípulos a capacidade de crítica do conhecimento apresentado
pelo mestre. À educação caberia, portanto, primordialmente, um trabalho de
reflexão, um esforço crítico capaz de transformar os conteúdos recebidos e se
deixar transformar por eles. Jean Lombard (1994, p. 11), nos lembra que o
modelo aristotélico está baseado em uma intersecção entre ensino e pesquisa, o
que pode ser verificado pela própria redação de textos como Meteologia, Das partes dos animais e mesmo o De anima, que teriam sido redigidos ou alterados pelo filósofo a
partir dos debates com os estudantes. Educar, assim, é uma prática capaz de
conduzir o indivíduo à condição de cidadão: como o propósito do ato educativo é
a felicidade, e essa só pode ser pensada a partir da vida na pólis, ou seja, como preocupação
política então, na tentativa de realizar plenamente a natureza humana, a paideia estaria intimamente ligada à politeia, como sugeriu Weiss (2007).
Nesse contexto, educar é despertar as virtudes não apenas como algo que se conhece, mas como algo que se prática e que se aprimora com a prática,
mas que, sobretudo, capacita para que a prática seja avaliada eticamente por
meio do conhecimento dos valores e das virtudes[2].
Esse modo
de compreensão da relação do ser humano com o saber pode, como dissemos, causar
estranhamento em nossos dias, pois estamos marcados por uma concepção de
conhecimento em que a pergunta sobre as causas ficou em segundo plano em
relação à pergunta sobre os efeitos. Tidas como ocioso assunto metafísico, a
pergunta sobre as coisas primeiras e últimas foi substituída, a partir da
ciência moderna, por uma tentativa de compreensão do funcionamento, fazendo com que o conhecimento assumisse uma
perspectiva de utilidade prática de domínio sobre a realidade. Estariam
contrapostos, assim, o velho Organon
aristotélico e o Novum Organon
baconiano, publicado em 1620, do qual derivaram as normas da obtenção do
conhecimento, boa parte delas em vigor ainda em nossos dias. Bacon acusa o
modelo platônico e aristotélico de serem apenas retórico-literários, baseados
em verdades prontas que poderiam ser acessadas pela contemplação racional. No
seu lugar, propõe um conhecimento que possibilite a intervenção na natureza, a
transformação pela ação, a experimentação e o domínio dos processos. Em
oposição ao discurso formal qualitativo, Galileu, um dos ícones desse modelo
moderno, prioriza o testemunho dos sentidos e, principalmente, conta com o auxílio da técnica na
explicação das qualidades dos fenômenos e na descrição quantitativa do mundo.
Condenando a autoridade dos antigos, principalmente a de Aristóteles, Galileu
escreve no seu O ensaiador:
Parece-me também
perceber em Sarsi sólida crença que, para filosofar, seja necessário apoiar-se
nas opiniões de algum célebre autor, de tal forma que o nosso raciocínio,
quando não concordasse com as demonstrações de outro, tivesse que permanecer
estéril e infecundo. Talvez considere a filosofia como um livro e fantasia de
um homem, como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa menos
importante é a verdade daquilo que apresentam escrito. Sr. Sarsi, a coisa não é
assim. A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se
abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender
antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito.
Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos,
circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível
entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um
obscuro labirinto. (GALILEI, 1983, p. 130).
A passagem evidencia a mudança
importante proposta pela modernidade quanto à noção de conhecimento:
desvencilhar-se das autoridades do passado e aprender a ler o livro da
natureza, decifrar os seus caracteres e alfabetizar-se em seus algoritmos. A
verdadeira filosofia, assim, convertida em ciência, atira-se à tarefa que
transformou o conhecimento em um serviço técnico de intervenção no mundo. O
desenvolvimento dessa estratégia atravessou quase cinco séculos e se desdobrou
em uma nova mudança a partir de meados do século XX, quando as chamadas
sociedades industriais desenvolvidas viveram uma revolução que transformou o
antigo modo de fazer ciência, basicamente porque reduziu o conhecimento a mera
informação.
Lyotard escreveu, em 1979 um
marcante livro sobre A condição
pós-moderna, no qual detectou uma mudança na posição do saber nas
sociedades pós-industriais. Já no primeiro parágrafo de sua obra ele anuncia
que sua “hipótese de trabalho é a de que o saber muda de estatuto ao mesmo
tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade
dita pós-moderna” (1988, p. 3). O diagnóstico do filósofo francês dava conta de
uma mudança no estatuto da ciência e, consequentemente, da própria universidade
como lugar de produção do conhecimento. O livro, por isso, é uma espécie de
inventário das mudanças provocadas pelo avanço das tecnologias sobre os saberes
científicos, filosóficos e artísticos: se o século XIX é marcado pela crise das
verdades, o esforço do século seguinte foi o de enquadrar o saber em novas
categorias, entre as quais destacam-se as ideias de performance, eficácia e...
competência, que não seriam mais do que manobras legitimadoras do modelo
produtivo em vigor e que teriam transformado a ciência em um mero processo de
busca, organização e armazenamento de informação, ela mesma, transformada em um
produto entre outros. Assim, reduzido a informação e mercantilizado, o
conhecimento passa ser medido em quantidades, sob o anseio de ser transferido
de um lugar a outro ou, mais especificamente, de uma mente a uma máquina, e,
daí, de uma máquina a outra. Esse modelo tornou o conhecimento alguma coisa
compatível com a máquina, algo que, no limite, estaria carregado de um valor de troca, um valor utilitarista
que cresce sob os umbrais da funcionalidade e da vantagem econômica para os
indivíduos que o detêm (segundo o modelo da posse) ou que detém os seus
equipamentos (no caso, as máquinas). Enfraquecido em suas versões éticas,
sociais, humanas e humanísticas, o conhecimento é comercializado em função dos
seus benefícios práticos e seus ganhos financeiros imediatos.
Esse
processo trouxe inúmeras consequências para a educação, o locus central onde, tradicionalmente, o conhecimento tem sido
gerado e promovido. As instituições de ensino precisaram, a partir de então
lidar com um conhecimento “deslegitimado” e acabaram, em muitos casos,
rendendo-se à nova tarefa de educar para o mercado do saber ou, melhor dizendo,
para o mercado que transformou o saber em uma mercadoria. O pensamento ético do
filósofo alemão Hans Jonas, pode contribuir tanto para uma avaliação
diagnóstica dessa mudança no estatuto do saber quanto para uma análise de suas
consequências éticas, apontadas por ele na missão educativa de responsabilidade
sujeitos para o uso do novo saber/poder tecnológico.
Uma
mudança no status do saber
Ao se perguntar por que a técnica se
tornou um objeto obrigatório da filosofia e da ética, Hans Jonas, recua até os
inícios da modernidade, onde ele identifica a instauração de um movimento de mudança
no status do saber, algo que, no
limite, seria para ele a característica central da modernidade. Assim, Jonas
não só concordaria com o diagnóstico de Lyotard, por exemplo, como o
interpretaria como desdobramento de movimentos anteriores nos quais se
fundamentou o avanço da chamada civilização tecnológica, marcada pela “dinâmica
formal” que transformou a técnica em uma “empresa coletiva” em vista da produção
de um “conteúdo substancial”, ou seja, de “coisas que aporta para o uso humano,
o patrimônio e os poderes que confere, os novos objetivos que abre ou dita e as
próprias novas formas de atuação e conduta humanas” que fomenta (TME[3], 25). Em outras palavras,
segundo Jonas, a era moderna é marcada por um processo de transformação do
conhecimento em uma ferramenta útil para a produção de bens – de domínio, de
consumo e de posse. A mudança no modo como entendemos o que é conhecimento
seria a premissa ontológica e gnosiológica da possiblidade do avanço
tecnológico que teve como consequência a redução do papel da educação a um
repasse utilitarista de informações e conteúdos úteis para o negócio da vida,
para as sempre novas demandas que se abrem pela exigência de inovação, eficácia
e competência, e a criação de novas necessidades capazes de alimentar o avanço
desenfreado do consumo dos novos produtos.
Para Jonas, por isso, a mudança no
estatuto do saber ocorreu porque a “velha e honorável separação entre ‘teoria’
e ‘prática’ desapareceu” e a “sede de conhecimento puro, o entrelaçamento entre
conhecimento nas alturas e ação na planície da vida tornou-se insolúvel e a
aristocrática autossuficiência da busca pela verdade por si mesma desapareceu”
(TME, 39). Nesse sentido, o campo teórico teria sido socializado na forma das
várias utilidades concretas do cotidiano. A fórmula de Jonas sintetiza como
esse processo levou a uma importante mudança no que campo do conhecimento:
“trocou-se a nobreza pela utilidade” (TME, 39). A antiga aristocracia teórica
da verdade que estava centrada na realização plena do ser humano, assim, foi
substituída por uma “socialização” (TME, 40) dos saberes em benefício do fazer,
ou seja, em direção à realização exclusiva dos potenciais técnicos do homem. Isso
porque a civilização tecnológica manteria uma “visão teórica subjacente” (TME, 35) segundo a qual, em sentido
ontológico, as coisas do mundo se abrem sempre em novas camadas a serem
conhecidas e, em sentido epistemológico, porque o conhecimento, traduzido em
“descobrimento e invenção”, passou a ser uma ação incessante, validada pelos
aparatos tecnológicos que substituem aquela tendência natural apontada por
Aristóteles por um conhecimento prático que se desenvolveu a partir da
“inter-relação entre ciência e
técnica”, algo que é, segundo Jonas, “a característica do progresso moderno”
(TME, 36). Para o autor, é “no movimento do conhecimento
onde primeiro e continuamente aparece a novidade mais importante”, ou seja, é
no âmbito do pensar que esse processo
se funda: de um lado, temos uma natureza que se oferece sempre de novo em sua
“infinitude virtual”; de outro, um conhecimento que, “ao invés de reduzir a margem
do que resta para ser descoberto”, acaba por surpreender-se “com dimensão após
dimensão de novas profundidades” a serem conhecidas e/ou alteradas. O
conhecimento tornou-se uma “investigação sem fim” em busca da inovação ou da novidade, ela mesma convertida em
epíteto recomendatório dos novos tempos, os tempos modernos:
A
grande virada é marcada pelo uso sempre mais frequente do epíteto laudatório
“novo” para uma variedade sempre maior de iniciativas humanas – na arte, na
ação e no pensamento. Essa moda linguística seria grave ou fútil dependendo do
caso, nos diz uma série de coisas. A elevação do termo a atributo laudatório
denuncia certo cansaço, até mesmo certa impaciência com as formas de pensar e
de viver até então dominantes. O respeito pela sabedoria do passado é
substituído pela suspeita de um erro inveterado e pela desconfiança de uma
autoridade inerte. Isso vem acompanhado de um novo estado de autoconfiança, de
uma firme convicção de que nós modernos estamos mais bem equipados do que os
antigos - e certamente melhor do que nossos antecessores imediatos - para
descobrir a verdade e melhorar muitas coisas. (SDD, 81)
Tal
progresso científico se deu simultaneamente por meio do progresso tecnológico
que o sustentou, pois o avanço nos equipamentos de acesso aos recônditos da
natureza desenvolveu-se como um “subproduto externo” do novo status do conhecimento: “para alcançar
seus próprios objetivos teóricos, a
ciência necessitava de uma tecnologia cada vez mais refinada e fisicamente
forte como ferramenta que se produz a si mesma” (TME, 38). Em outras palavras,
porque o conhecimento agora é compreendido como exploração infinita do mundo,
então foi preciso desenvolver ferramentas que sustentassem essa tarefa. A
ciência, assim, transformou, com o serviço da técnica, a natureza em um
laboratório de grande escala, “uma incubadora para novas perguntas”, em um
círculo indeterminado e infinito, nunca passível de qualquer saturação. Para
Jonas, portanto, o conhecimento foi reduzido a uma versão utilitarista e
intervencionista amparada tecnologicamente. Isso significa que os antigos
reinos teórico e prático se diluíram em uma única estratégia, levada a cabo como
“mútua relação de feedback” entre
ciência e técnica, em um recíproco movimento de impulso e necessidade, segundo
um vínculo que Jonas caracteriza como “funcional” e que acaba por fazer com que
a ciência se transforme em um “agente de infatigabilidade” para a tecnologia
(TME, 38).
O problema
é que, tendo perdido sua raiz reflexiva e seu potencial de realização da
essência humana em sentido pleno, “a aspiração ao conhecimento” se transformou
em uma atividade meramente operacional, guiada por um avanço ininterrupto adiante,
marcado por um afã por “novos passos em todas as direções possíveis”, diluindo
os próprios objetivos e inventando sempre novas necessidades. O conhecimento se
transforma, assim, em um impulso cego, amparado em uma “impressionante história
de êxitos” (TME, 21) e em uma confusão entre entre meios e fins, já que não há
mais linearidade dos processos, mas circularidade (objetivos podem ser
satisfeitos com novas técnicas e vice-versa). Novas necessidades e objetivos
não solicitados guiam a atividade do homo
faber, que passa a ver nessa tarefa uma necessidade vital, principalmente
quando associada à atual “dieta socioeconômica”. O conhecimento se coloca a
serviço do “progresso”, um impulso incerto e sem direção, que se torna um valor
em si mesmo, “um adorno ideológico da moderna tecnologia” (TME, 31). Atrelado a essas malhas da atividade produtiva
da inovação constante, o conhecimento se transforma, também ele, em um produto,
na medida em que está embutido nas próprias ferramentas que inventa.
O prejuízo
central desse modelo seria, segundo Jonas, não necessariamente a socialização
dos saberes, mas a ilusão dessa pretensa democratização do conhecimento e,
principalmente, a sua redução em termos epistemológicos e culturais.
Transformado em mera ferramenta de serviço diante do mundo, o conhecimento
tornou-se “em si mesmo culturalmente débil” e o risco parece ainda mais grave
quando associado a um fazer técnico que se desligou da reflexão e, com isso,
perdeu a capacidade de meditação ontológica (sobre o ser das coisas que altera e sobre a imagem das coisas que pretende inventar) e ética (sobre o dever contido no uso dos novos poderes).
Em outras palavras, sem aquela antiga capacidade reflexiva e reduzido aos
expedientes utilitários e funcionais da tecnologia, o conhecimento se
transformou em um perigo para o próprio homem. O processo, para Jonas, se
apresenta como uma crise cultural, porque o conhecimento estaria “em risco de
abrandar-se ou de converter-se em rígida ortodoxia – esse eros teórico já não vive só do delicado apetite pela verdade, senão
que é estimulado por seu rebento mais robusto, a técnica” (TME, 38). O “eros teórico” ou seja, aquele “desejo de conhecer”, apontado por
Aristóteles, foi reduzido a uma ortodoxia na medida em que implantou-se como um
imperativo vocacional de cada indivíduo e da civilização como um todo, sob os
riscos e os perigos de uma tecnociência livre de valores e de responsabilidade.
O homo faber, porque suplantou o homo sapiens, acaba por conduzir a
civilização atual para um conjunto de perigos nunca antes imaginado e para o
qual o atual estágio do conhecimento nos deixou totalmente despreparados para a
necessária avaliação da consequência dos usos dos novos poderes.
Uma
educação para o fazer
O modelo
educacional foi amplamente impactado por esse novo estatuto do conhecimento,
fazendo com que, muitas vezes, as instituições educativas reduzam os seus
experientes a uma formação tecnicista do homo
faber na forma de profissionais qualificados para o serviço técnico. Essa
redução do conhecimento à sua funcionalidade foi tematizada por Michael Young,
para quem “o papel central do conhecimento na educação tem, sem dúvida,
declinado no decorrer dos anos” (2016, p. 20), tanto por motivos políticos
quanto por causas internas às próprias comunidades educativas. O exemplo da
Inglaterra, segundo ele, seria paradigmático, na medida em que os atores
políticos teriam transformado as políticas de educação em mera política econômica, tendo como resultado
a substituição do conhecimento pelo discurso da habilidade: trata-se de
postergar a reflexão em nome da urgência dos benefícios econômicos da ciência,
de incentivar a perspectiva produtiva e funcional do regime estruturado em
torno da dependência do consumo e de minimizar ou até mesmo anular qualquer
tipo de questionamento de cunho ético ou político que possa representar um
empecilho para o avanço da economia de livre-mercado.
Essa crise
vem sendo alargada pela dúvida cética sobre o valor do conhecimento, algo que marca
a sociedade contemporânea e que foi primeiramente definida pelo filósofo alemão
Friedrich Nietzsche como uma tendência niilista
da cultura que acatou a dúvida sobre a verdade única como um dos seus
principais aspectos. A chamada pós-modernidade, assim, cresceu sob os auspícios
da escola da suspeita inaugurada pelos pensadores do fin du siècle, marcado pelo ceticismo e pela décadence que colocaram em xeque qualquer conhecimento objetivo.
Algo que, segundo Young teria afetado fortemente os debates e os estudos sobre
educação, resultando em uma perspectiva cada vez mais “situada” dos saberes e
em um crescente ceticismo em relação às próprias estratégias educativas,
potencializado pelos pretensos fracassos quanto aos interesses e às motivações
dos discentes e dos docentes. Na prática, esse clima acabou tendo consequências
para o currículo na medida em que: “se todo conhecimento está situado em um
contexto, isso leva a um relativismo que rejeita a suposição de haver um
conhecimento ‘melhor’ em qualquer área, que poderia ou deveria embasar o
currículo escolar. Como consequência, o currículo se torna aberto a toda uma
variedade de finalidades outras que não sejam a aquisição de conhecimento”
(YOUNG, 2016, p. 21). Ainda que a solução proposta por Young (que ele chama de
“conhecimento poderoso”), seja questionável, principalmente pelo seu acento na
especialização dos saberes (justamente um dos pontos centrais da ideia de
progresso e “motor de divisões”, algo que foi amplamente criticado pelos
autores da teoria da complexidade, principalmente Edgar Morin), é importante
notar que seu diagnóstico recolhe as consequências daquela mudança no estatuto
do saber apontado por Jonas (e também por Lyotard).
Se
somarmos a essa desconfiança em relação à verdade a redução do conhecimento aos
serviços técnicos de exploração do mundo, os currículos e os objetos da
educação acabaram por se render à lógica da mera acumulação de informação e
conteúdo cuja utilidade é direcionada tanto pelos objetivos econômicos quanto pelos
novos horizontes ideológicos e utópicos representados pela própria tecnologia.
De um conjunto de saberes, o
conhecimento se transformou aos poucos, em um arquipélago fragmentário de fazeres, cujo acento tecnológico
transforma em poderes. À educação caberia
apenas o gerenciamento desses fazeres,
sua transmissão na forma de habilidades capazes de contribuir para que o
profissional (e não o cidadão) saiba utilizá-los em benefício da
retroalimentação do progresso técnico, agora tido como meta da vida humana,
algo que se torna, afinal, mais convincente na medida em que suas promessas se
concretizam em êxitos. O conhecimento, assim, foi perdendo aos poucos tanto o
seu potencial realizador da natureza humana, herdado do mundo antigo, quanto o
seu potencial emancipatório, herdado do iluminismo, gerando uma insistente
ênfase na relatividade do saber, ou
seja, na sua redução às circunstâncias locais e à realidade de seus sujeitos.
Tal ênfase teria conduzido, inclusive à insistência no valor da aprendizagem, absolutamente legítima
quando contraposta à centralidade do ensino,
compreendido como as estratégias didáticas de transmissão de conhecimento, mas
que pode acabar por ter um prejuízo quando comparada ao conhecimento em si
mesmo, porque abre caminho para o uso funcional do saber: finalmente, o
estudante precisa aprender para “se dar bem na vida” e contribuir para o
progresso da sua comunidade, não necessariamente para se realizar enquanto ser
humano. O perigo é que o destaque dado à aprendizagem do estudante acabe
deslizando para uma hipertrofia da utilidade, na medida em que aqueles tipos de
conhecimento considerados “inúteis” ou até mesmo “danosos” ao avanço cego do progresso
tecnológico, são colocados em segundo plano ou até mesmo excluídos dos
currículos. É o que pode acontecer, por exemplo, com disciplinas da área social
ou de humanas, quando não são capazes de demonstrar sua contribuição para o progresso
desejado, o que faz com que os impactos dessas tendências sobre as humanidades,
seja bastante relevante, com a redução dos investimentos e o escanteamento das
disciplinas e dos cursos nos ambientes educacionais.
A difícil interrogação
que nasce desse contexto pode ser formulada nos seguintes termos: a que
conhecimento os alunos devem ter acesso na escola? A pergunta, no fim, está
ligada às nossas concepções de mundo mais íntimas, às ideias de felicidade e
bem-estar que temos, aos valores e aos pressupostos de nossas constituições
pessoais e culturais. Afinal, o que precisamos conhecer para atingir esses ideais
ou para enfrentarmos os imensos desafios da inclusão social, da luta contra a
desigualdade, da preservação ambiental e todas as outras urgências de nosso
tempo? E como podemos garantir acesso igualitário ao conhecimento como direito?
E para quem teria esse direito? E, levando em conta a prerrogativa da isonomia
educativa, como garantir um mesmo conhecimento
para todos? Young apresentou o
problema em termos de distribuição do
conhecimento ao qual poderíamos acrescentar a questão sobre o tipo de conhecimento, tendo em conta
processos que priorizaram a formação de mão-de-obra das classes mais baixas
para o mercado de trabalho. Com isso, a ênfase na aprendizagem, quando reduzida
à utilidade do conhecimento orientado para as atividades práticas e em vista do
enfrentamento de problemas sociais específicos, acaba por comprometer os
aspectos de plenitude humana que está contido na ideia de conhecimento.
A educação
por competências, como se sabe, está ligada a um forte acento na aprendizagem e, nesse sentido, ela
carrega alguns perigos que precisam ser evitados. Primeiro o fato de que o
acento na necessidade de resposta imediata, utilitária e funcional do
conhecimento e sua aplicação a realidades concretas, pode reduzir o processo
educativo a índices quantitativos segundo o modelo exclusivo de uma educação
por resultados, no qual indicadores como aprovação em exames e empregabilidade
ganham relevância, em detrimento de elementos epistemológicos, éticos ou
político-cidadãos. Outro perigo diz respeito ao problema da “autoridade” do
conhecimento e do próprio professor. No primeiro caso, a imposição do conhecimento
“situado”, que dá prioridade ao tipo de saber derivado das experiências
concretas de um indivíduo em sua localidade e em seu tempo, pode contribuir
para um esvaziamento dos conhecimentos “independentes do contexto” (YOUNG,
2016, p. 10), justamente aqueles que fazem parte das abstrações que
sistematizam o concreto e lhe dão caráter generalizado que, desde Platão, faz
parte do ato de conhecer. Tal posição se apoia, aliás, na justa defesa do
direito à diferença e da multiculturalidade que deve animar o ato educativo,
sem dúvida, mas que pode trazer graves prejuízos se não estiver acompanhada de
uma reflexão a respeito dos conhecimentos que são de todos e para todos. O
exagero do contexto, nesse caso, poderia levar à perda do potencial libertador
do conhecimento, agora atrelado à prisão da experiência situada e às
circunstâncias de cada sujeito. Estaríamos, assim, no campo do construtivismo exacerbado.
Se a abstração do conhecimento é um mal a ser seriamente combatido, o seu
encerramento no âmbito privado das circunstâncias e das internalidades
culturais é o outro lado de uma mesma moeda. Lutar contra a centralidade do
poder e a tirania dos currículos centrais e dos seus arautos não significa
relativizar toda ideia de autoridade, porque é preciso fazer uma diferença
entre “poder sobre” e “poder com”: Foucault, por exemplo, na esteira
de Nietzsche, demonstrou que o poder nem sempre é central e que sua estrutura é
microfísica, ou seja, ocorre como uma rede, compartilhada em um jogo de
frequentes mudanças. Professores experientes e “qualificados” continuam sendo
uma demanda indispensável de todo processo educativo não para exercerem um poder sobre os estudantes, mas para
mediarem um poder com eles e assim,
educarem para o uso do poder, para a exposição de todos a esse poder, para o
exercício de sua distribuição, para o proveito de seus benefícios e a
minimização de seus riscos. O professor não pode reduzir a sua atividade simplesmente
ao conhecimento de estratégias didáticas e metodologias que motivem os
estudantes a fazerem por si mesmos, um processo que pode levar para um lugar de
conforto em relação ao que ele mesmo deveria saber e também transmitir.
O excesso discursivo é um erro; mas a
hipertrofia da atividade também pode
ser, na medida em que ela desconecta ensino e pesquisa, esvazia o ensino de seu
conteúdo e o reduz à condução de técnicas que coloquem os estudantes em ação,
aprendendo por si mesmos ou com seus pares, prescindindo da dupla autoridade, a
do conhecimento e a do professor. Mais uma vez: isso não significa que as
experiências particulares não possam transformar o próprio conhecimento (que,
afinal, permanece como um problema)
ou que os estudantes não possam questionar a autoridade central do professor. Obviamente
isso está em jogo e deve assim permanecer. Trata-se, contudo, de evocar os riscos
de um exagero oposto àquele da centralidade no ensino.
Em
outras palavras, a justa defesa do multiculturalismo não pode prescindir da
ideia de que todos os conhecimentos devem
ser para todos. Para Young esse problema pode ter como pressuposto uma
visão equivocada da autoridade, em um tempo em que as autoridades parentais
(pais, professores, padres, pastores, patrões e políticos em geral) estão em
descrédito. Tudo se passa como se “a autoridade fosse algo incômodo e não
democrático” (2016, p. 10) e como se ela não fosse suficiente para desenvolver
a relação dos estudantes com o conhecimento, uma autoridade que, no limite,
teria perdido terreno para outras ferramentas como as sedutoras tecnologias de
comunicação. Em outras palavras, respeitar o professor não significa mantê-lo
no centro do processo educativo todo o tempo, mas também não é esvaziar
completamente a sua autoridade. Sem autoritarismo, o professor deve favorecer um
poder compartilhado e equitativo que se dá na relação entre ele mesmo, os estudantes e o conhecimento, de forma
que todos saiam transformados dessa experiência. Por isso as instituições de
ensino não podem senão se reconhecerem como “comunidades educativas”, uma rede
interconectada de saberes complementares e relativos (no sentido de serem
relacionais). Só assim haverá, de fato, emancipação. Do contrário, estaremos
formando operários para a técnica e não seres humanos.
Isso
significa que a educação não pode, de maneira nenhuma, render-se à utilidade
tecnicista do conhecimento que fora denunciada por Jonas. Uma das premissas da
educação que Young defende é de que o “conhecimento vale a pena por si só”
(2016, p. 14) e, com isso, ele retoma a visão aristotélica que se contrapõe à
funcionalidade do saber. É preciso fugir da abstração ociosa, mas também é
preciso aprender a tomar distância do cotidiano: esse gosto por lonjuras é, na
verdade, a porta para chegarmos perto das nossas próprias circunstâncias; é
dele que deriva o empenho de transformação da realidade: transformando o
conhecimento pela tensão entre o próximo e o distante, e transformados por ele,
os indivíduos estão aptos para transformar o mundo que os cerca.
A
tensão do conhecimento: entre o fazer e
o saber
Ainda que
Jonas não tenha escrito nenhum texto a respeito, os desdobramentos dessa
problemática no campo da educação são evidentes e tem despertado o interesse de
muitos pesquisadores, principalmente da chamada educação ambiental. Em uma
passagem da sua obra de 1979, O Princípio
Responsabilidade, o filósofo define a educação nos seguintes termos:
a
educação tem, portanto, um fim determinado como conteúdo: a autonomia do
indivíduo, que abrange essencialmente a capacidade de responsabilizar-se; ao
alcançá-la (ou supor-se que foi alcançada), ela termina no tempo. O término
ocorre de acordo com sua própria lei, e não de acordo com a concordância do
educador – nem sequer na medida de seu êxito -, pois a natureza concede apenas
uma só vez um determinado lapso de tempo, no qual a educação precisa realizar
sua tarefa. Depois disso, o objeto de responsabilidades anteriores se torna,
ele mesmo, um sujeito de responsabilidades (PR, 189).
Malgrado a
passagem tenha um motivo específico (o debate em torno do papel do pai e do
político) e uma visão ampliada da educação (não apenas resumida à instituição
escolar), ela fornece uma definição bastante rica: a tarefa da educação reúne
autonomia e responsabilidade e está diretamente conectada com o horizonte do
futuro, ou seja, com a exigência de que o crescimento pessoal e os interesses
privados de um indivíduo estejam acompanhados de sua capacidade de pensar
eticamente o seu compromisso com a humanidade presente e futura. Jonas une,
portanto, a historicidade e a natureza em um único princípio capaz de orientar
a tarefa educativa. A consequência dessa noção exige uma revisão no conceito de
conhecimento e na sua função: para Jonas a nova ética deve ser capaz de reunir
os saberes científicos em torno de uma projeção dos “efeitos distantes da ação
técnica” (PR, 70), algo que ele assume como “o primeiro novo valor a ser
exercitado hoje para o mundo de amanhã” (TME, 42), ou seja, a capacidade de
previsão. No horizonte das preocupações filosóficas de Jonas, assim, a educação
deve se desvencilhar de sua tarefa autocentrada de incentivo à tecnologia e
dedicar-se à articulação de saberes em torno da formação de uma “ciência da
previsão hipotética” (PR, 70) que faça do conhecimento um saber que “se origina
daquilo contra o que devemos nos proteger” (PR, 71). À educação caberia, assim,
o papel de capacitar os sujeitos para o “reconhecimento do malum” (PR, 71) de suas próprias ações, consultando o temor antes
do que o desejo, fomentando o “conhecimento do possível” na forma de uma
“heurística” capaz de despertar o sentimento de responsabilidade e evitar a
aposta arriscada que vem sendo levada a cabo pela tecnologia ideologicamente
associada ao progresso e financiada pelas grandes corporações. Jonas questiona
o que ele chama de “crença supersticiosa na onipotência da ciência” (PR, 205).
Para ele, a educação não deveria ser um esforço para fazer o homem se adaptar
ao novo cenário tecno-científico, mas um ato de questionamento sobre a sua
lógica interna. Às instituições educativas, assim, caberia assumir a
responsabilidade sobre um objeto (o próprio ser humano em formação, os
estudantes) para torná-lo, ele mesmo, um sujeito responsável diante do
conhecimento agora transformado em poder.
Em uma
importante passagem do primeiro capítulo de sua obra Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio
responsabilidade, de 1985, Hans Jonas aponta, entre os aspectos filosóficos
da técnica moderna, a sua rápida absorção e difusão na comunidade tecnológica,
algo quer seria explicado por aquilo que ele chama de “pressão da
concorrência”. Para o autor, “a difusão tecnológica se produz (...) tanto no
plano do conhecimento como no da apropriação prática: o primeiro (junto com sua
velocidade) vem garantido pela intercomunicação universal, por sua vez uma
conquista do complexo tecnológico; o segundo, forçado pela pressão da
concorrência” (TME, 30). Ou seja, de um lado o conhecimento se difunde com o
apoio das novas tecnologias, de outro, ele é assumido como urgência por
indivíduos que querem permanecer profissionalmente competitivos. Um pouco mais
adiante Jonas esclarece o seu conceito: a pressão
da concorrência ocorreria “pelo benefício, mas também pelo poder, a
segurança, o prestígio etc. – como um perpetuum
movens da universal apropriação das
melhores técnicas” (TME, 32). Ou seja, no mundo do mercado, vale mais quem
detém as melhores tecnologias (na forma de processos e dispositivos), quem é
capaz de implementar modelos de inovação e empreendedorismo e de fomentar a
novidade e o progresso. O “princípio comum” de “manter a cabeça acima d’água”
torna-se, assim, uma lei geral que passa a orientar a atividade educativa.
Seria mais competente quem fosse capaz de sobrepor-se aos demais.
O conceito
jonasiano de “pressão da concorrência”
nos leva à noção de competências, que
adentrou na educação brasileira de forma bastante conturbada, a partir dos
desdobramentos da Lei de Diretrizes e Bases da educação, de 1996 e dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, de 1999 e PCN+ de 2002) e em certa
medida repercutida pelas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, de 2006.
Entre seus teóricos, destaca-se o do francês Philippe Perrenoud, que teve
vários de seus trabalhos traduzidos para o português. Como mostra Ricardo
(2010), a noção de competências carrega o perigo de orientar unicamente a
educação ao serviço da indústria e dos serviços produtivos em geral, daí o seu
enfoque na ideia de uma junção entre o saber
(que não mais bastaria em si mesmo) e o saber-fazer,
em benefício de uma maior produtividade profissional, já que este deveria
colocar o conhecimento à disposição do empregador e dos seus anseios, na forma
de habilidades produtivas. Mais uma vez estamos no campo dos riscos do exagero.
O conhecimento poderia se transformar, assim, em um dispositivo a serviço do
lucro e passaria a guiar os contratos de trabalho pela lógica de sua
funcionalidade, fazendo com que a educação estivesse empenhada em formar esses
operários para o fazer e não
necessariamente para o pensar. Nesse fazer, contudo, não estariam apenas
inseridas as habilidades para manusear as máquinas. O novo modelo produtivo
globalizado passa a incluir “aspectos da personalidade dos trabalhadores, como
responsabilidade, iniciativa, comunicação, empreendedorismo”, que são
“enfatizados em detrimento de qualificações técnicas, pois sobrevivem à
automatização e parecem responder melhor às crises” (RICARDO, 2010, p. 608). Ou
seja, as habilidades, por si mesmas, não seriam mais suficientes.
Retomando
o problema do status do saber
colocado por Hans Jonas, conforme apresentamos acima, Ricardo afirma que os
modelos educativos orientados por essa perspectiva “atribuem distintos status aos saberes e às práticas. Isso
implica diferentes status na legitimação
dos saberes que serão objetos dessas formações, bem como suas referências”
(2010, p. 609). Essa mudança não tem sido evidenciada apenas nos chamados
cursos técnico-profissionalizantes, mas nas próprias universidades. Trata-se,
obviamente, de uma visão empobrecida da noção de competências, facilmente
combatida quando ligada a esse novo status
do saber operacional. Uma visão que acabaria por construir também
subjetividades funcionais, já que a educação passa a reproduzir o ideal da
empregabilidade e do sucesso profissional como elementos centrais de uma vida
feliz. Sujeitados, os indivíduos seriam formados
e treinados segundo aquele ideal
do homo faber apontado por Jonas: um
mero operário da técnica. Um prejuízo, sem dúvida, derivado daquele excesso de
circunstâncias que levaria a uma educação adaptativa, na qual os sujeitos são
convocados mais a se ajustarem, de maneira individualista, ao novo ideal do
que, necessariamente, à transformação de suas realidades por meio de ações
coletivas e organizadas. O sujeito, agora, estaria entregue à sua capacidade de
adaptação e de atualização e, não raro, seria vitimado pelas incertezas abertas
cotidianamente pelas incansáveis inovações tecnológicas em curso que o
pressionam e exigem competência para
enfrentar a concorrência.
Na medida
em que as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais insistem na necessidade de
uma educação capaz de “assimilar as mudanças tecnológicas e adaptar-se às novas
formas de organização do trabalho” (BRASIL, 1999, p. 73), elas estariam
fomentando aquela tensão que diz respeito ao status do conhecimento, que agora passa a ser avaliado pela
instituição empresarial segundo seus próprios critérios de utilidade. Em outras
palavras, a educação passaria a ser avaliada pelo mercado quanto à sua eficácia
e “se antes a escola era vista como uma promessa de emprego, agora passa a ser
vista como um caminho para a empregabilidade, sob a responsabilidade de cada
um” (RICARDO, 2010, p. 611). Em consequência, chegaríamos ao mesmo problema
apontado por Young: o conhecimento passaria a ser uma propriedade individual e
sempre circunstancial, cujos interesses são sempre particulares. O risco seria
a transformação da escola em um espaço de negócio e de intercâmbio de
experiências privadas, o que poderia “conduzir a um subjetivismo e a um
relativismo epistemológico” (RICARDO, 2010, p. 612), além de suas derivações
éticas que minimizariam o aporte dos valores e da responsabilidade, em nome de
uma hipertrofia da produção e do avanço do progresso técnico desmedido.
Os
trabalhos de Perrenoud, no geral, apresentam uma visão menos simplista da noção
de competência, ainda que mantenha a insistência na “situação”: “uma capacidade
de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em
conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (PERRENOUD, 1999, p. 7) e como a
reunião de “múltiplos recursos cognitivos: saberes, capacidades,
microcompetências, informações, valores, atitudes, esquemas de percepção, de
avaliação e de raciocínio” (PERRENOUD et al., 2002, p. 19). Essa noção combate
a mera memorização de conteúdos e exige julgamento e capacidade de
discernimento a respeito do que deve ser feito em determinada situação
concreta, no qual a atitude reflexiva diante dos problemas reais é muito
relevante. A estrutura de saberes anteriores é uma espécie de pano de fundo
sobre o qual se desenvolve a capacidade de aplicação desses saberes e de sua
renovação diante dos problemas. O conhecimento, nesse caso, deve estar sempre
conectado com as práticas, em vista da utilização adequada dos instrumentos e
dos recursos técnicos. Perrenoud acentua a importância dessa articulação e, com
isso, compreende o papel da educação como a promotora da capacidade de
mobilização dos saberes em vista desses conhecimentos, em papel ativo dos
estudantes e não necessariamente perante a transferência de informações por
parte dos docentes. Essa noção evoca valores e atitudes que ultrapassam o mero
valor técnico, incluindo a capacidade de criar novas respostas e de transformar
o conhecimento em contato com a realidade, e vice-versa. O acento óbvio no
sujeito remete ao potencial intuitivo do aprendizado, capaz de analisar as
situações concretas e responder a elas da maneira mais adequada. Para
Perrenoud, a escola não pode simplesmente repassar conhecimentos, porque seria
preciso capacitar o estudante para que ele mobilize os saberes e enfrente a
complexidade do mundo ao seu entorno. Competência, nesse caso, aparece como uma
espécie de alternativa ao modelo educativo centrado meramente na transmissão de
conteúdos, ainda que deva ser pensada não como uma contraposição a estes
últimos, já que eles estão integrados a ela como um de seus aspectos.
Essa
descrição acentua a importância da relação entre conhecimento e situação, ou
seja, da experiência concreta de aplicação e retroalimentação do conhecimento a
partir das vivências próprias dos indivíduos. Isso é destacado também por
Fourez ao debater a questão da transversalidade das competências, mas também
dos saberes: para ele, é “em situações particulares que se desenvolvem as
competências, métodos, modelos, noções ou conhecimentos” e só então elas
poderiam ser transferidas para outras classes de situações (1999, p. 5). As
situações, assim, mobilizam diferentes saberes e a necessidade de integrá-los
de diferentes formas. E esse é o “valor de uso” que as competências acrescentam
ao conhecimento. Nesse sentido, mais grave do que o déficit de conhecimento dos
estudantes, é a sua incompetência em utilizá-los. Nesse sentido, destaca-se o
potencial criativo do conhecimento, mobilizado por metodologias educativas que
se realizem como esforço de integração de saberes capaz de vencer os processos
fragmentários das disciplinas em geral, bem como a redução da aula a um
processo burocrático e bancário. Educar é gestar o conhecimento, portanto. Menos
conteúdos e situações-problema mais intensos e significativos: eis a meta desse
ideal que certamente encontra muitos desafios em uma realidade escolar em que
os professores estão despreparados (e talvez até desmotivados) para rever suas próprias
metodologias, algo que, aliás, exigiria dedicação e tempo de reflexão,
elementos raros no mundo das “empresas de educação” ou mesmo da educação orientada
pelos moldes empresariais, marcados pela precarização das condições de trabalho
dos docentes.
De alguma
forma, a visão de competências apresentada por Perrenoud apresenta-se como uma
alternativa diante da crítica de Jonas: seria preciso que o homo sapiens retomasse sua precedência
sobre o homo faber, ou seja, que o
homem da técnica pudesse recuperar seu papel reflexivo para não apenas repetir
o processo de expansão tecnológica, mas também julgar as suas consequências, os
custos e os danos neles contidos. Para isso, ele deveria ser capaz de
utilizar-se intuitivamente de vários saberes, articulá-los em
situações-problema e assumir responsabilidade diante dos vários cenários
possíveis do seu próprio fazer. Isso
só será possível, portanto, se formos capazes de recusar aquele modelo simplista de competências em nome de um
modelo que poderíamos chamar de crítico,
baseado na articulação do saber com o
fazer orientado por um dever responsável.
Considerações
finais
A proposta
de uma ética da responsabilidade formulada por Hans Jonas evidencia o desafio
de que a educação não forme apenas para o uso do poder, mas para a decisão de
impor-lhe “freios voluntários” (PR,
21) em nome da garantia da preservação da vida. A sua crítica às utopias
do progresso estaria, assim, em franca oposição ao modelo simplista de competências,
na medida em que suas premissas evocam um “poder sobre o poder” (TME, 75), ou
seja, a capacidade de que os sujeitos sejam capazes de articular vários saberes
para medir o seu fazer. Nesse modelo a educação deveria assumir
prioritariamente o debate ético em vista de qualificar os cidadãos a
questionarem a própria lógica de produção a todo custo e de consumo
desenfreado, cujo resultado tem sido a crise ambiental que atinge, em nossos
dias, um patamar de extrema gravidade. À educação caberia o urgente papel de
preparar os indivíduos para a responsabilidade diante do futuro da vida e, para
isso, ela deveria fomentar uma “futurologia comparativa” (PR, 70), uma espécie de “futurologia da advertência” baseada na “heurística do temor” (PR, 70),
capaz de prever as consequências negativas desse modelo de sociedade, dando
preferência para o malum das ações
presentes a fim de despertar um sentimento capaz de orientar eticamente os
sujeitos de agora a fim de evitar a catástrofe. A urgência da responsabilidade
leva à educação a tarefa de enfrentar os desafios do modelo de produção
exaustiva que fomenta o desgaste dos recursos naturais e a “dieta da gula”
consumista, um modelo que é incentivado pelas práticas que reduziram o
conhecimento ao fazer tecnicista.
Ao assumir
a sua responsabilidade diante dos riscos trazidos pelo progresso tecnológico, a
educação deveria educar para a “modéstia nas
metas, nas expectativas e no modo de vida”, o que significa não incentivar uma
visão de empregabilidade e sucesso profissional que está embasado na posse dos
bens de consumo. Uma nova mudança seria necessária: a educação deveria “dar
ouvidos ao pior diagnóstico e não ao melhor; porque as apostas se tornaram
demasiado elevadas para arriscar”, afirma Jonas (TME, 77). Educar para a “frugalidade em nossos hábitos de
consumo”, para a parcimônia, a contenção, a continência e a temperança (TME,
77), valores que o filósofo vai buscar na ética aristotélica não por acaso, já
que elas são derivações de um modelo no qual, como vimos, o conhecimento é
vizinho da virtude que une paideia e politeia, com a ressalva de que a
simplicidade de agora não está mais ligada a uma busca pela perfeição pessoal,
mas é “exigida com vistas à preservação de nossa morada terrena” (TME, 77). Ao
invés de educar para a gula, torna-se urgente educar para a reforma dos hábitos
de consumo, o que exigiria um questionamento da redução da ideia de felicidade
à segurança financeira e ao sucesso profissional. Nesse a educação assumiria a
ideia de competência em sentido crítico e poderia ser um importante mecanismo
para que a vida humana e
extra-humana, como nossa magnífica herança, seja possível no horizonte do
futuro.
Referências
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Michael FD. Por que o conhecimento é importante para as escolas do século XXI?.
Cadernos
de Pesquisa, São Paulo, v. 46, n. 159, p. 18-37, 2016.
*
O presente artigo é parte de pesquisa
realizada com apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do
Ensino Superior), processo BEX 6115/15-2.
[1]
Doutor em Filosofia; Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCPR; coordenador do GT Hans Jonas da ANPOF e do Grupo de Pesquisa Hans Jonas
do CNPq. Pós-doutor pela Universidade de Exeter, UK. E-mail:
jelsono@yahoo.com.br
[2] Essa interpretação
evidencia como a avaliação de Bacon e de outros pensadores modernos quanto ao
conhecimento em Aristóteles não é completa: ao insistirem no seu caráter
contemplativo do ponto de vista epistemológico, eles acabam por esquecer que
ela tem um caráter ético-político bastante prático.
[3] Usaremos as siglas convencionais para
a citação das obras de Hans Jonas: TME (Técnica,
Medicina e Ética); PR (O princípio
responsabilidade); e SDD (para o ensaio O
século dezessete e depois: o significado da revolução científica e
tecnológica). Seguindo a
sigla referente ao título da obra, está o número da página. Para os demais
autores, seguiremos o sistema autor-data.