Usos e significados de
“self” e “identidade” em Mind, Self and Society*
José Umbelino Gonçalves-Neto[1]
Universidade Federal do
Ceará (Brasil)
Aluísio Ferreira de Lima[2]
Universidade Federal do
Ceará (Brasil)
Recibido:
Marzo 10 de 2017 – Revisado: Abril 5 de
2017 - Aceptado:
Mayo 20 de 2017
Referencia
norma APA: Gonçalves-Neto, J. U., & Lima, A. F. (2017). Usos e significados
de “self” e “identidade” em Mind, Self and Society. Rev. Guillermo de Ockham, 15(1), In press.
This work is
licensed under CC BY-NC-ND
Resumo
O presente artigo apresenta uma análise
dos conceitos de “self” e “identidade”, identificando seus usos, significados
no clássico Mind, Self and Society
(1934), do psicólogo social George Herbert Mead. O método utilizado tomou como
base a apropriação do pensamento de Ludwig Wittgenstein sobre a linguagem, como as palavras ganham seus
significados e como lidar com problemas conceituais. Assim, foi realizado um
levantamento sistemático de todos os casos em que Mead empregou os referidos conceitos
no livro, seguido de uma descrição desses conceitos e de sua rede conceitual. A
análise permitiu elucidar sinonímias, confusões e sobreposições de sentido
entre “self” e “identidade” no texto do autor, além de esclarecer as relações
desses conceitos com outros da teoria de Mead. A relevância dessa análise está
na possibilidade de sanar ou prevenir confusões conceituais no uso desses
conceitos em outras teorias influenciadas por Mead.
Palavras-chave:
George Herbert Mead, self, identidade, análise conceitual, psicologia social.
Los usos y significados de “self” e “identidade” en Mind, Self and
Society
Resumen
En este artículo se presenta un análisis
de los conceptos de “self” e “identidad”, identificando sus usos, significados
en el clásico Mind, Self and Society
(1934), del psicólogo social George Herbert Mead. El método utilizado se basa
en la apropiación del pensamiento de Ludwig Wittgenstein sobre el lenguaje,
como las palabras adquieren su significado y como hacer frente a los problemas conceptuales.
Por lo tanto, fuera realizado un estudio sistemático de todos los casos en los
que Mead empleó estos conceptos en el libro, seguido de una descripción de
estos conceptos y su red conceptual. El análisis ha permitido esclarecer
sinonímias, confusión y superposición de significado entre “self” e “identidad”
en el texto del autor, además de clarificar la relación de estos conceptos con
otros de la teoría de Mead. La relevancia de este análisis está en la
posibilidad de reparar o prevenir confusiones conceptuales en el uso de estos
conceptos en otras teorías influenciadas por Mead.
Palabras
clave:
George Herbert Mead, self, la identidad, el análisis conceptual, psicología
social.
Uses and meanings of “self” and “identity” in Mind, Self and Society
Abstract
This article
presents an analysis of the concepts of "self" and
"identity", identifying their uses, meanings in the classic Mind,
Self and Society (1934) by the social psychologist George Herbert Mead. The
method was based on the appropriation of Ludwig Wittgenstein's thinking about
language, how words gain their meanings, and how to deal with conceptual
problems. Thus, a systematic survey of all the cases in which Mead employed
these concepts in the book was carried out, followed by a description of these
concepts and their conceptual network. The analysis allowed to elucidate
synonyms, confusions and superposition of meaning between "self" and
"identity" in the author's text, besides clarifying the relations of
these concepts with other concepts of Mead's theory. The relevance of this
analysis lies in the possibility of remedying or preventing conceptual
confusion in the use of these concepts in other theories influenced by Mead.
Keywords: George Herbert Mead, self, identity, conceptual analysis, social
psychology.
Considerações
iniciais sobre o método de análise conceitual de um texto teórico
O presente artigo
trata da análise dos conceitos de “self”
e “identidade”, identificando os usos, significados e gramática destes
conceitos na teoria do psicólogo
social George Herbert Mead, mais especificamente a análise desses conceitos no
livro Mind, Self, and Society (Mead, 1934,
1934/2010). Para tanto, foi organizado um método próprio que tomou como base a
perspectiva de Ludwig Wittgenstein (1953/2012, 1958/1992a, 1958/1992b) sobre a
linguagem, sobre como as palavras
ganham seus significados e sobre como lidar com problemas conceituais. As
considerações metodológicas a seguir são fruto de nossa apropriação do
pensamento deste filósofo.
Segundo
a abordagem de Wittgenstein (1958/1992a, 1958/1992b, 1953/2012), quando um
autor define um conceito e afirma o que aquele conceito é, descrevendo o
fenômeno a que tal conceito se refere, tal autor está determinando a gramática
desse conceito. Isto é, ao dar uma definição e explicações sobre um conceito,
um autor tenta regular as ocasiões em que os membros de sua comunidade
linguística podem empregar esse conceito, ditando as regras de como tal
conceito pode ser usado. No jogo de linguagem, dar uma definição é dizer quais
jogadas se pode fazer com um termo, é estabelecer a função do termo no jogo. As
definições, ao explicar o que uma coisa é, têm o formato de proposições
empíricas, quando de fato funcionam como prescrições para a aplicação de um
conceito. Ou seja, as definições funcionam como regras. E por dizer respeito a
regras, é que, na perspectiva de Wittgenstein, se afirma que uma análise
conceitual é uma análise gramatical.
Nesse
sentido, o objeto de estudo dessa análise conceitual será o comportamento
linguístico de um autor, o qual se acessa por meio do texto que esse autor
produziu. O texto é lido, interpretado e descrito. Essas descrições são
análogas às observações que o cientista empírico faz sobre a natureza. Enquanto
o pesquisador empírico descreve fenômenos, fatos e processos, o investigador
conceitual descreve conceitos, afirmações e linhas de raciocínio.
A
relevância de uma pesquisa dessa natureza está no fato de que os conceitos,
afirmações e linhas de raciocínio conduzem a determinadas maneiras de atuar concretamente
no mundo. Sendo assim, os mal-entendidos e as confusões conceituais podem levar
a problemas empíricos sérios, como conclusões enganosas, pseudoexplicações e
absurdos. Assim, a clareza conceitual na ciência tem implicações práticas
importantes. A investigação conceitual, portanto, tem a função de esclarecer ou
mesmo prevenir mal-entendidos (Wittgenstein, 1953/2012, § 90, p. 65).
O
método que Wittgenstein adota em sua obra tardia (cf. 1958/1992a, 1958/1992b,
1953/2012) consiste em descrever diferentes exemplos em que um termo é
utilizado, e então comparar esses diferentes exemplos. Essa descrição pode ser
complementada por uma apreciação crítica das definições e explicações de um
conceito. De todo modo, o objetivo é elucidar o jogo de linguagem de um autor
ou teoria.
No
que diz respeito ao presente estudo, como já indicado, o autor cujo texto
analisamos foi George Herbert Mead (1863-1931). Mead foi
professor de filosofia, ciência e um dos fundadores da Psicologia Social
norte-americana. Foi influenciado pela teoria da seleção natural de Charles
Darwin, pelo Pragmatismo de William James e John Dewey, e pela dialética de
Hegel (Álvaro & Garrido, 2006; Souza, 2011). Sua obra mais conhecida é o
livro Mind, Self and Society: from the
standpoint of a social behaviorist (1934), editado postumamente por Charles
Morris e traduzido para vários idiomas. Nesse texto, notamos que Mead buscou
uma abordagem científica e não metafísica para a Psicologia Social, porém afastando-se
do modelo científico defendido por John B. Watson nas décadas de 1920-30.
No
campo da Psicologia Social, após um período de obscuridade, Mead vem sendo
resgatado nos últimos anos para a pesquisa e a reflexão sobre as relações entre
indivíduo e sociedade (Bazilli et al., 1998; Farr, 1996; Ferreira, 1999; Lima,
2010; Sass, 2004). Como Souza (2011) afirma, a teoria de Mead “ampliou a
reflexão sobre o processo de interação social, significando a linguagem como
elemento central para a formação social do self e da gênese constitutiva das
identidades psicossociais” (p. 375).
Nesse
resgate histórico do autor, Mead vem sendo cada vez mais utilizado como
referência teórica em pesquisas sobre identidade, entretanto, este autor não
desenvolveu teoricamente o conceito de “identidade”, trabalhando
especificamente com o conceito de “self”,
o que pode ser uma fonte de confusões conceituais. Diante dessa problemática, o
objetivo do presente estudo foi elucidar sinonímias,
confusões e sobreposições de sentido entre “self”
e “identidade” em Mind, Self and Society,
de modo a esclarecer as relações desses conceitos com outros da teoria de
Mead.
Assim, o escopo
deste estudo foi delimitado da seguinte maneira: os conceitos-alvo foram “self” e “identidade”, buscando
identificar suas semelhanças e diferenças, e descrever a rede teórica da qual
fazem parte; o estudo foi delimitado a um texto clássico do autor, o livro Mind, Self, and society, na sua versão
original em inglês (Mead, 1934) e em uma versão traduzida para o português
(Mead, 1934/2010).
Nas
descrições sobre o conceito-alvo, consideramos que o uso das aspas tem um papel
metodológico, pois serve para distinguir quando o conceito-alvo está sendo
utilizado de quando o conceito está sendo referido. Ou seja, quando estamos
fazendo referência a um conceito, tal como se faz referência a qualquer objeto,
este é redigido entre aspas. É um procedimento simples, mas que pode evitar
mal-entendidos, pois na análise conceitual o objeto de estudo é o conceito, e
não o fenômeno que este conceito se refere.
O
tratamento dado ao texto foi o seguinte: fizemos uma busca de todos os trechos de
Mind, Self and Society em que Mead
utilizou a palavra “identidade” e a palavra “Self”. Essas referências foram impressas, com a indicação da obra e
página onde se encontra. Essas citações foram organizadas em colunas, uma para
os usos da palavra “Self” e outra
para os usos da palavra “identidade”. Então, essas diferentes citações foram comparadas
entre si, buscando aspectos em comum (suas semelhanças de família), sua função na
teorização, relações com outros conceitos, sinonímias e confusões. Para
a compreensão mais aprofundada, buscamos as considerações de outros autores que
trataram dos conceitos-alvo, para esclarecer relações de influência ou de
apropriação teórica. Com essa interpretação e análise, redigimos uma síntese,
elucidando os usos e significados dos conceitos-alvo, isto é, descrevendo: os
contextos em que o conceito-alvo aparece, as regras que regem seu uso, o que o
autor fez ao utilizar o conceito, qual a função do conceito na teoria. Tal
síntese configura o resultado desta análise conceitual.
Os usos de
“self” e “identidade” em Mind, Self and
Society
Autores
de contextos bem diferentes vêm sugerindo consensualmente que o conceito de
“identidade” como se entende na Psicologia Social seria advindo do conceito de
“self social”, tal como este foi
desenvolvido por William James em seu “The
Principles of Psychology” (1890). Por exemplo, essa opinião aparece nos
textos de Chen, Boucher e Tapias (2006), Ciampa (1977), Deschamps e Moliner
(2009), e Souza e Gomes (2005).
Porém
foi George Herbert Mead que desenvolveu a noção de “self social” de um modo que os psicólogos sociais pudessem então
trabalhar a noção de “identidade social”. George Mead valeu-se de William James
e Charles Cooley (Chen, Boucher, & Tapias, 2006; Souza & Gomes, 2005),
ressaltando desses autores os aspectos sociais da teorização sobre o self.
Mead, entretanto, irá se diferenciar desses seus interlocutores buscando uma
abordagem mais externalista.
James
(1890) afirma que o “social self” de
um homem está no reconhecimento que ele recebe de seus parceiros, acrescentando
que um homem tem tantos “social selves”
quantos há indivíduos que o reconheçam e carreguem em suas mentes uma imagem
dele. Assim, James conclui: “...Nós praticamente podemos dizer que ele tem
tantos eus sociais diferentes quanto os distintos grupos de pessoas cujas
opiniões ele se importa. Ele geralmente mostra um lado diferente de si mesmo a
cada um desses grupos diferentes.” (James, 1890, p. 295). Em James, temos que
meu “self social” não é uno, mas
diverso, e se configura pela referência que os outros dão de mim, a partir de
minha vinculação afetiva com esses outros, a partir dos grupos nos quais me
incluo.
Cooley (1922), por sua vez, dirá que o self se configura pelas observações e
expectativas do indivíduo sobre os outros com quem se relaciona, imaginando e
supondo a imagem que eles teriam dele. Assim, Cooley compara o self a um espelho (looking-glass self): o “self”
é entendido como a imagem que o indivíduo forma de si mesmo ao imaginar o que
os outros pensam dele. Cooley diria: o que eu penso de mim depende do que eu
imagino que os outros pensam de mim, de modo que olhar para como os outros me
veem seria como olhar para um reflexo de quem sou (Cf. Cooley, 1922, pp.
184-185).
Chen,
Boucher e Tapias (2006) observam que Mead ecoou a crença de Cooley de que o self é modelado pela antecipação e
observação das respostas dos outros indivíduos, mas enfatizando aí a influência
dos grupos sociais importantes ao indivíduo e da sociedade de um modo geral.
Além disso, mas diferenciando-se de James e Cooley, que enfatizaram as emoções
e sentimentos envolvidos na configuração do self
de um indivíduo, “...Mead enfatizou os alicerces cognitivos do Eu, tais como o
papel crucial da tomada de perspectiva” (Chen, Boucher, & Tapias, 2006, p.
152), alicerces cognitivos relativos à linguagem e à comunicação, portanto,
enfatizando o aspecto social do self. Quanto a isso, em seu Mind, Self, and society, Mead afirma:
É verdade que Cooley e
James tentam situar a base do self
nas experiências afetivas reflexivas, ou seja, naquelas experiências que
envolvem os próprios sentimentos. Mas a teoria segundo a qual a natureza do self deve ser encontrada naquelas
experiências não explica a origem do self
e nem dos próprios sentimentos que supostamente caracterizam essas
experiências. [...] Como dissemos, a essência do self é cognitiva; situa-se no diálogo internalizado de gestos que
constitui o pensamento ou nos termos dos quais procedem o pensamento ou a
reflexão. Assim, a origem e os fundamentos do self, como os do pensamento, são sociais. (Mead, 1934/2010, p.
191).
Para
Mead, o self se forma com o uso da
linguagem; dito em seus termos: através do diálogo com gestos significantes. O
significado, para Mead, consiste em a pessoa realizar um gesto para outra
pessoa e a resposta subsequente provocada no receptor ser a mesma que evoca no
emissor. Destacamos aqui como o autor descrevia a interação social com os
termos que dispunha à época, ou seja, com o paradigma mecanicista de
Estímulo-Resposta. Mead diria que duas pessoas se entendem, compartilham os
mesmos significados, quando ambas reagem do mesmo modo diante dos mesmos
estímulos verbais. Em suas palavras: “O indivíduo se estimula para a resposta
que está eliciando em outrem e, então, age, até certo ponto, em resposta a essa
situação.” (Mead, 1934/2010, p. 178). Esta coincidência de respostas tanto de A
quanto de B num diálogo implica em as pessoas se tornarem objetos para si ao
adotarem as atitudes do outro em relação a si. Quando A se dirige a mim, eu o
entendo ao adotar sua atitude em relação a mim. Quando eu, B, me dirijo a A,
ele me entende ao adotar minha atitude em relação a ele.
Em seu sentido
significante, a linguagem é aquele gesto vocal que tende a despertar no
indivíduo a mesma atitude que este elicia nos outros, e é esse aperfeiçoamento
do self pelo gesto que media as
atividades sociais que dá origem ao processo de assumir o papel do outro.
(Mead, 1934/2010, p. 178).
Nesse
ponto de vista meadiano, fala-se também que ocorre no processo comunicativo uma
relação de autorreconhecimento, pois, como Mead afirma, o gesto dotado de
significado é aquele em que a pessoa “...reage ao que emite para outrem e em
que essa sua reação passa a fazer parte de sua própria conduta, quando ela não
só ouve, mas responde a si mesma, fala consigo e responde a si mesma, tal qual
o outro lhe responde” (Mead, 1934/2010, p. 155). Reagir ao que emite para outrem
possibilita o sujeito se tomar reflexivamente como um objeto de experiência,
adquirir autoconsciência, daí proporcionando um senso de identidade para a
pessoa.
Essa explicação meadiana acerca do senso de
identidade tem feito com que muitos psicólogos sociais citem Mead como se ele
falasse diretamente de identidade (Cf., por exemplo, Íñiguez, 2001, p. 215). Todavia,
no original de Mind, Self, and society
(1934), o termo “identity” apenas é utilizado oito vezes. Dessas oito
ocorrências, somente em dois casos a palavra “identity” tem o mesmo sentido que
a noção psicossociológica de identidade pessoal ou social.
A
primeira ocorrência de “identity” está
na Parte 2 “Mind”, Seção 9 “The Vocal Gesture and the Significant Symbol”
(Mead, 1934, pp. 61-68), precisamente no seguinte trecho:
O estímulo que evoca um som
particular poderá ser encontrado não só nos outros organismos do grupo, mas
também no repertório da ave particular que utiliza o gesto vocal. Este estímulo
A evoca a resposta B. Agora, se esse estímulo A não é igual a B, e se
assumirmos que A evoca B, então se A é usado por outros organismos, estes vão
responder no formato de B. Se este organismo também utiliza o gesto vocal A,
ele estará, em si, evocando a resposta B, de modo que a resposta B será
enfatizada em oposição das outras respostas, porque a resposta B é evocada não
só pelos gestos vocais de outros organismos, mas também pelo próprio organismo.
Isso nunca ocorreria se não houvesse uma identidade representada por A, neste
caso, uma identidade de estímulos. (Mead,
1934, p. 64-65).
No
trecho acima, o autor está tentando explicar um processo de interação entre
organismos, descrevendo como as respostas de um organismo podem ser, ao mesmo
tempo, estímulos utilizados por um mesmo organismo ou por organismos diferentes
de um mesmo grupo. Note-se que aí ele está usando “identidade” para falar de
dois estímulos iguais ou semelhantes, empregando por fim a expressão
“identidade de estímulos”.
No
trecho seguinte encontramos um uso semelhante: “Você está sempre respondendo a
si mesmo, justamente como outras pessoas te respondem. Você assume que em um
certo grau deve haver identidade na resposta. Isso é ação numa base comum”
(Mead, 1934, p. 67). Aqui de novo “identidade” no sentido de igualdade,
semelhança, “identidade na resposta”.
Em
seguida “identity” aparece ainda na Parte 2, na seção 12 “Universality” (Mead,
1934, pp. 82-90). Ao falar sobre o que é o “significado” e sobre o que é
“universalidade”, Mead discute as diferenças de perspectivas assumidas num
processo comunicativo entre falantes e ouvintes. Ele coloca que nessas
diferentes perspectivas, porém, deve haver uma identidade entre elas.
Identidade aqui tem o sentido de “unidade”:
Na medida em que o
indivíduo indica o significado a si próprio no papel do outro, ele ocupa o seu
ponto de vista; e como ele está indicando o significado para o outro a partir
de sua própria perspectiva, e como aquilo que é assim indicado é idêntico, deve
ser aquilo que pode ser em diferentes perspectivas. Deve, portanto, ser um
universal, pelo menos na identidade que pertence às diferentes perspectivas que
são organizadas na perspectiva única, e na medida em que o princípio da
organização é aquele que admite outras perspectivas além daquelas efetivamente
presentes... (Mead, 1934, p. 89).
O termo
“identity” é empregado de novo, também na Parte 2, na seção 17 “The Relation of Mind to Response and
Enviroment” (Mead, 1934, pp. 125-134), no seguinte trecho, com a mesma
acepção de “igualdade, semelhança”: “A universalidade se reflete em termos
comportamentais na identidade da resposta, embora os estímulos que a evoquem
sejam todos diferentes.” (p. 125). Aqui ele está falando de categorização de
comportamentos como sendo ocorrências diferentes de um mesmo tipo. Respostas
semelhantes, que têm identidade, formam uma certa universalidade, ou seja, uma
mesma categoria.
Vimos,
portanto, que nos trechos acima “identidade” tem o sentido de “igualdade”,
“equivalência”, “semelhança” ou ainda “unidade”. Um exercício para tirar isso à
prova é o leitor substituir estas palavras onde “identidade” foi utilizada. O
sentido da frase irá mudar muito pouco.
Somente
na Parte 3 “Society”, o termo
“identidade” tem uma função semelhante à dada por psicólogos sociais hoje, ou
seja, servindo para falar de relações entre pessoas. Na seção 36, “Democracy and Universality in Society”
(pp. 281-289), o conceito aparece no seguinte trecho:
Nesse sentido, estes dois
fatores – primeiro, o domínio de um indivíduo ou um grupo sobre outros grupos;
segundo, o senso de fraternidade e identidade de diferentes indivíduos do mesmo
grupo – vieram juntos no movimento democrático... (Mead, 1934, p. 287).
Neste
caso, o termo “identidade” também é usado para indicar semelhança ou unidade,
mas com uma diferença sutil: agora é colocado no contexto não da Lógica, mas no
da Sociologia. Nas ocorrências anteriores, “identidade” indicava uma igualdade
de objetos (estímulos ou respostas), sendo tal igualdade uma questão de
percepção, categorização e lógica. Agora, porém, aparece compondo a expressão
“senso de fraternidade” e “senso de identidade”, indicando a igualdade de
indivíduos ou unidade de um grupo, o que não se resume a uma questão de
percepção. Segundo autores como Deschamps e Moliner (2008/2009), ou então
Goffman (1963/1988), a unidade de um grupo é decorrente de relações de
reconhecimento cognitivo (questão de percepção, categorização e lógica), mas sobretudo
de reconhecimento social e ético, o que diz respeito a garantia de direitos,
trocas afetivas, compartilhamento de valores, crenças em comum etc. Esse é um uso do termo “identidade”
como noção psicossocial.
Mais
adiante na parte 3, encontramos o emprego da palavra “identity” na Seção 41 “Obstacles and Promises in the Development of
the Ideal Society” (pp. 317-328), em dois trechos, e em ambos com sentidos
diferentes entre si:
Um membro da comunidade não
é necessariamente igual aos outros indivíduos dela por ser capaz de
identificar-se com eles. É possível ele ser diferente. Pode haver um conteúdo
comum, uma experiência comum, sem que haja uma identidade de função. (Mead,
1934, p. 325)
Neste
trecho também ocorre um uso semelhante ao do caso anterior, mas com algumas
pequenas diferenças. Mead está discutindo homogeneidade-heterogeneidade grupal.
Diz que um indivíduo pode partilhar as mesmas experiências e conteúdos com
outros indivíduos de sua comunidade, porém exercendo funções (papéis) sociais
diferentes. O verbo “identificar-se” tem uma clara acepção social, dizendo
respeito ao compartilhamento de interesses. Porém, neste mesmo trecho, quando
diz “identidade de função”, “identidade” tem a acepção lógica de “igualdade”
entre objetos.
Por
outro lado, na citação seguinte, da mesma Seção 41 “Obstacles and Promises in the Development of the Ideal Society”, é
que enfim veremos “identidade” sendo usado tal como “self”:
Há, é claro, um certo
conjunto de reações que pertencem a todos, que não são diferenciadas quanto ao
aspecto social, mas que se expressam em direitos, em uniformidades, nos métodos
comuns de ação que caracterizam membros de comunidades diferentes, em maneiras
de falar, e assim por diante. Distinguível de tais reações está a identidade,
que é compatível com a diferença de funções sociais dos indivíduos, e que é
ilustrada pela capacidade do indivíduo em assumir o papel dos outros a quem ele
afeta – o guerreiro colocar-se no lugar daqueles a quem ele está indo contra, o
professor colocar-se na posição da criança a quem ele está buscando instruir.
(Mead, 1934, pp. 325-326)
Em
outras passagens de sua obra, Mead descreve que a criança desenvolve seu “self”
por ser capaz de assumir a atitude do outro em relação a si mesma. As
brincadeiras e jogos seriam bastante importantes para exercitar isso porque
muitas delas envolvem imitação e troca de papéis (brincar com bonecas(os),
pega-pega, polícia e ladrão, futebol etc.). Então no trecho acima ele coloca
que “...a identidade [...] é ilustrada pela capacidade do indivíduo em assumir
o papel dos outros a quem ele afeta.” (p. 326). Neste trecho fica clara a
sinonímia entre identidade e self.
Aqui “identidade” tem uma acepção de unidade e igualdade, mas se referindo
especificamente a uma unidade psicológica, ou seja, ser “o mesmo”, um mesmo
“eu”, que é compatível com uma certa diversidade de modos de agir. Aqui temos
também um uso aparentado ao de “identidade pessoal e social”.
E
finalmente, a última ocorrência de “identidade” no livro de Mead aparece no Ensaio
Suplementar III, “The Self and the
Process of Reflection” (pp. 354-378). É o que vemos ao final do seguinte
trecho:
À medida que a criança
completa o círculo do mundo social ao qual ela responde e cujas ações ela se
estimula a produzir, ela acaba completando de alguma forma o seu próprio Self em direção do qual todas essas
atividades lúdicas podem ser dirigidas. É uma realização que se anuncia na
passagem da forma anterior da brincadeira para a dos jogos, sejam eles os jogos
competitivos ou os jogos mais ou menos dramáticos, nos quais a criança entra
como uma personalidade definida, que se mantém por toda a representação. Seu
interesse passa das estórias, contos de fada, contos populares, para as
narrações conectadas em que ela, a criança, pode sustentar uma identidade
simpática ao herói ou à heroína no correr dos acontecimentos. (Mead, 1934, pp.
370-71)
Nesta
citação, também encontramos um uso do termo “identidade” semelhante ao de
“self”, mas ao mesmo tempo já se aproximando da acepção dada pelos autores de
psicologia social atuais. “Identidade” aí tem o sentido de unidade psicológica
(self) e de conjunto de
características identificadoras, aparecendo aqui o sentido de “identidade
pessoal e social”. Em suma, concluímos que no texto de Mead (1934) a palavra
“identity” só é traduzível por “self” em duas situações, na citação acima e na
anterior.
No uso
que Mead faz do termo “self”, esse termo seria melhor traduzido para o
português por “Eu”, “Si mesmo”, “autoconsciência”, “experiência de si”, “noção
de si mesmo”. Mas “self” e “identidade” se confundem quando Mead se refere ao “I”,
da “self-consciousness”, da experiência de si e da noção de si mesmo. Algum
pesquisador poderia dizer que aí está implicada a questão da identidade
pessoal, que é o senso que um indivíduo tem de si próprio a partir do que
percebe de si e do que os outros percebem dele.
Outro
ponto importante é que Mead irá dizer que o “self” possui duas instâncias: “Eu” e “mim”. Em nossa interpretação
da teoria meadiana, “Eu” e “mim” são instâncias temporais, e não espaciais.
Dito de outro modo: “Eu” e “mim” são conceitos que se referem a momentos,
referem-se a determinados momentos em que o indivíduo está agindo, e não a
determinadas partes dentro dele. O termo “Eu” se refere ao momento em que o
sujeito age, em que ele é sujeito da sua ação, em sua experiência imediata. O
termo “mim” se refere ao momento em que o sujeito observa o que fez, lembra-se
do que fez, avalia o que fez em relação às atitudes dos outros, o momento de
sua experiência em que ele é um objeto para si. É plausível cogitar que Mead
escolheu esses dois termos devido às suas funções gramaticais: seja no
português, seja no inglês, geralmente “eu” tem função de sujeito e “mim” função
de objeto.
Entender
“eu” e “mim” como instâncias espaciais, dimensões ou partes do self conduz à interpretação de que são
elementos internos ao self, daí,
elementos internos à mente do indivíduo. Parece-nos que essa interpretação
mentalista dos conceitos “eu” e “mim” se dá pelo fato de que na Psicologia se
costuma falar de elementos constituintes do aparelho psíquico ou da mente.
Entretanto, como Spaniol (1989) observa, a transposição de um uso corriqueiro
de um termo em um dado contexto para outro contexto é uma das fontes de
mal-entendidos ou confusões conceituais. Nas psicologias psicodinâmicas,
costuma-se falar no aparelho psíquico ou mente em termos espaciais. O aparelho
psíquico possui locais entre os quais as representações, os afetos etc. circulam.
Em nossa interpretação, não é assim que Mead (1934) usa seus conceitos, pois
ele buscava uma abordagem comportamental dos fenômenos psicológicos (vide a
Introdução e capítulos iniciais de Mind,
Self, and society).
Assim, “eu” e “mim” se referem a momentos da
experiência do indivíduo com ele mesmo. No ensaio The mechanism of social consciousness, de 1912, Mead afirma: “O
‘mim’ é a resposta de um homem à sua própria fala” (p. 405). Sobre o “Eu”,
complementa: “O ‘Eu’, portanto, nunca pode existir como um objeto na
consciência, mas o próprio caráter conversacional de nossa experiência
interior, o próprio processo de responder à própria fala, implica um ‘eu’ nos
bastidores que responde aos gestos, aos símbolos, que surgem na consciência.”
(p. 406). O conceito de “mim” se refere à experiência de si, do que se pensa,
sente, se observa e se faz; o conceito de “Eu” se refere à unidade psicológica
autora e contexto da experiência. “O real e autoconsciente
Self nas interações sociais é o objetivo ‘mim’ ou ‘mim(s)’, com seu contínuo processo
de responder (agir) acontecendo e implicando um ‘Eu’ fictício e sempre fora de
seu próprio campo de visão.” (p. 406). O conceito de “Eu”, em Mead, é semelhante ao “eu
transcendental” definido por Kant (Mead, 1912, p. 406). Mas podemos acrescentar
que é também semelhante à noção de “eu observador” do Zen Budismo, sendo a
instância base onde a experiência ocorre e que a vivencia.
Considerações finais
A guisa de conclusão, é preciso apontar algumas
limitações do presente estudo. A primeira delas diz respeito ao processo de
interpretação de textos. O sentido de um texto, não está nele mesmo, nem na
“intenção” do autor, mas sim no diálogo entre o texto e o seu leitor (Eco,
2001). Portanto, a interpretação inevitavelmente terá o viés daquele que a faz,
o que significa que outro pesquisador, debruçando-se sobre a mesma obra,
provavelmente apresentará uma visão diferente. Sabendo dessa característica e
tentando diminuir a produção de distorções, apresentamos o máximo possível de
citações diretas dos autores, mostrando ao leitor as palavras da própria fonte.
Com isso, tentamos garantir que nossas interpretações e sínteses fossem
plausíveis e coerentes com o texto do autor analisado.
A
segunda limitação se refere à escolha apenas do livro Mind, Self and Society (Mead, 1934) para análise. Embora esse seja
o livro mais influente do autor, sabemos que apenas a análise desse texto não
permite afirmar como o autor faz uso dos conceitos “self” e “identidade” em toda sua obra. Para tanto, seria preciso
realizar uma análise conceitual semelhante em todos os seus artigos, bem como
em seus outros livros. Entretanto, essa limitação foi deliberada, pois,
considerando a relevância do Mind, Self
and Society para autores contemporâneos, o objetivo foi analisar como Mead
fez o uso desses conceitos nesse livro.
As observações de
Mead (1934) sobre o Self são ainda
base para estudos atuais, por seu foco sobre a tomada de perspectiva e o
desenvolvimento da linguagem como condição para a formação do Self. As limitações de sua teoria são
relativas ao período histórico em que foi produzida, como por exemplo as suas
descrições nos termos do paradigma S-R. Ainda assim, sua contribuição é
importante de ser lembrada por tecer uma compreensão dos processos psicológicos
mentais em termos da interação social.
Em Mead (1934), o termo “Self” se refere ao processo em que o sujeito se experiencia como
alguém próprio, atua como um eu e se percebe reflexiva e conscientemente como
um objeto de experiência, podendo se referir a si mesmo como “mim”. O termo “identidade”, por
outro lado, foi utilizado pelo autor sobretudo para se referir à unidade de
coisas.
Referências
Álvaro,
J. L. & Garrido, A. (2006). Psicologia
social: perspectivas psicológicas e sociológicas. São Paulo: McGraw-Hill.
Bazilli,
C. et al. (1998). Interacionismo
simbólico e teoria dos papéis. São Paulo: Educ.
Chen, S., Boucher, H. C., & Tapias, M. P. (2006). The relational self revealed: integrative conceptualization and
implications for interpersonal life. Psychological
Bulletin, 132(2), 151-179.
Ciampa, A. C. (1977). A identidade social e suas relações com a ideologia (Dissertação de
mestrado não publicada). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.
Cooley, C. H. (1922). The Social Self - 1. The Meaning of 'I'. In C. H.
Cooley, Human Nature and the Social Order
(pp. 168-210). New York: Charles Scribner's Sons. Retirado de http://www.brocku.ca/MeadProject/Cooley/Cooley_1902/Cooley_1902f.html
Deschamps, J.-C. & Moliner, P. (2008/2009). A identidade em Psicologia Social: dos
processos identitários às representações sociais. Petrópolis,
RJ: Vozes.
Eco,
U. (2001). Interpretação e
superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes.
Farr, R.
(1996). As raízes da psicologia social
moderna (1872-1954). Rio de Janeiro: Vozes.
Ferreira,
R. M. (1999). O modelo do Eu produzido socialmente em G. H. Mead. Psique, 9(15), 75-90.
Goffman,
E. (1963/1988). Estigma: notas sobre a
manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC.
Íñiguez-Rueda, L. (2001). Identidad: de lo personal a lo
social. Un recorrido conceptual. In E. Crespo (Ed.). La constitución social de la subjetividad (pp. 209-225). Madrid: Catarata.
James, W. (1890). Chapter X - The Consciousness of Self. In W. James. The Principles of Psychology (online,
pp. 292-402). Recuperado
de: http://psychclassics.yorku.ca/James/Principles/prin10.htm
Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na
perspectiva da Psicologia Social Crítica. São Paulo: FAPESP; EDUC.
Mead, G. H. (1912). The
mechanism of Social Consciousness. Journal
of Philosophy, and Scientific Methods, 9(15),
401-406. Retirado de https://brocku.ca/MeadProject/Mead/pubs/Mead_1912a.html
Mead, G. H. (1934). Mind, Self, and society (Edited and
introduction by Charles W. Morris). Chicago: The University of Chicago Press.
Mead, G.
H. (1934/2010). Mente, Self e sociedade
(M. S. Mourão, trad.). Aparecida, SP: Ideias & Letras.
Sass, O.
(2004). Crítica da razão solitária: a
psicologia social segundo George Herbert Mead. Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco.
Souza, M.
L. & Gomes, W. B. (2005). Aspectos históricos e contemporâneos na
investigação do self. Memorandum, 9, 78-90.
Souza, R.
F. (2011). George Herbert Mead: contribuições para a história da Psicologia Social.
Psicologia & Sociedade, 23(2), 369-378.
Spaniol, W. (1989). Filosofia e método no segundo Wittgenstein: uma luta contra o
enfeitiçamento do nosso entendimento. São Paulo: Loyola.
Wittgenstein, L. (1953/2012). Investigações filosóficas (7ª ed., M. G.
Montagnoli, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco.
Wittgenstein, L. (1958/1992a). O livro azul (J. Mendes, trad.). Lisboa:
Edições 70.
Wittgenstein, L. (1958/1992b). O livro castanho (J. Mendes, trad.). Lisboa:
Edições 70.
* Pesquisa
realizada com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). As identidades da "identidade": sobre os diferentes
usos e significados do conceito "identidade" na Psicologia Social,
defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Ceará, em 2015.
[1]
Psicólogo. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Psicologia (2015) pela
Universidade Federal do Ceará. Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (INCT-ECCE) e pesquisador do
Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em
Psicologia Social Crítica. E-mail: jugneto@hotmail.com
[2] Psicólogo. Pós-doutorado,
doutorado e Mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professor e Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UfC (Brasil).
Lider do Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções
em Psicologia Social Crítica. E-mail: aluisiolima@hotmail.com